Aqui no site nós temos uma seção que fala sobre os materiais didáticos acessíveis. Esse é um dos serviços que nós prestamos e talvez o texto não forneça uma noção tão boa sobre como é esse processo aqui na L2. Então, vou contar um pouco melhor para vocês sobre como desenvolvemos materiais didáticos acessíveis.
O início
O Felipe é um grande amigo nosso que é cego e está fazendo doutorado em Física na UFMG. Ele tem retinose pigmentar, ficou completamente cego aos 19 anos e fez todo o ensino superior e mestrado já cego. Hoje, com mais de 30, ele está tocando o doutorado estudando eletromagnetismo. Quem trabalha com educação básica sabe como é difícil encontrar materiais didáticos acessíveis, mesmo tendo milhares de alunos com deficiência. Agora imagina conseguir esses materiais para um doutorado, que tem poucas pessoas cursando e um percentual muito menor de pessoas com deficiência. Bom, esses materiais simplesmente não existem. Não há livros sobre eletromagnetismo acessíveis, não há materiais em braille, nada tátil, nada que facilite. E numa área que depende muito de diagramas, gráficos e desenhos, a falta de acessibilidade desses materiais gera uma dificuldade a mais. Isso sem falar em toda a linguagem matemática que, mesmo que esteja dentro de um livro com alguma acessibilidade para os leitores de tela, dificilmente estará num formato amigável para esses programas. Como se eletromagnetismo já não fosse difícil o suficiente…
Por causa disso o Felipe nos procurou para que produzíssemos os materiais acessíveis para ele. Depois dos primeiros resultados ele se animou e decidiu pedir mais coisas. Ele sempre estudou matemática e física, mas não sabia como eram as formas gráficas de muitas funções descritas na linguagem matemática. Por isso, ele nos pediu materiais táteis que representassem funções mais básicas, como seno e cosseno, e também algumas formas geométricas planas e espaciais. De posse da missão dada, iniciamos o desenvolvimento e a produção.
Nada para nós sem nós
Nós sempre nos preocupamos em colocar inclusão em tudo que fazemos. Por isso, esse paradigma que é tão falado precisa estar presente desde sempre. Quando se fala “Nada para nós sem nós” significa que qualquer coisa que estivermos fazendo para as pessoas com deficiência nós devemos incluí-las também no processo, não apenas no resultado final. Aqui na L2 isso é muito forte e nós procuramos incluir o Felipe o máximo possível. Para esse trabalho isso significou que não nos baseamos apenas nas nossas experiências para a produção dos materiais didáticos acessíveis, mas também ouvimos as impressões dele ao longo do processo, pegamos indicações, atendemos a pedidos, mudamos as coisas e fomos acertando tudo de forma que o material fosse o melhor possível para atender às necessidades dele.
Essa participação do Felipe foi fundamental para que não houvesse um material feito por um vidente para um cego, mas sim um material desenvolvido em conjunto por um cego e um vidente. Isso é interessante porque, por mais que nós videntes tentemos, jamais teremos a exata noção da dinâmica que um cego tem ao estudar. Então, qualquer material feito somente por nós, sem a participação de um cego serial um material incompleto. Esse método de trabalho claramente não é o mais tradicional, mas temos convicção de que produziu um material muito mais relevante e adequado. Se a intenção é ter um material didático acessível de verdade, então não tem como fugir disso. E nem há porque fugir, é muito prazeroso trabalhar de forma inclusiva!
E é claro que isso não significa que jogamos o trabalho pra cima do Felipe. Ele forneceu impressões importantíssimas e foi incluído, mas o trabalho pesado foi todo nosso.
A tecnologia é nossa amiga
Usar a tecnologia sempre foi uma premissa aqui na L2. Nesse trabalho usamos modelagem 2D e 3D, corte laser e até impressão 3D. Essas técnicas permitiram um grau muito alto de personalização e qualidade, além de diminuir os custos e aumentar a velocidade de produção. Quando se fala de peças personalizadas, é difícil manter o custo baixo, já que é na escala que se costuma ter uma diminuição maior do custo. Mas essas técnicas permitiram agregar uma excelente relação custo-benefício. A precisão das peças é um claro ponto de destaque que só pôde ser obtido pelo uso das máquinas CNC. E tudo isso num tempo muito resumido. Muitos dos materiais didáticos acessíveis mais comuns são feitos manualmente, em processos bastante artesanais. Isso aumenta muito o tempo de produção e exige um artesão habilidoso. Com o uso das máquinas, o tempo de produção foi bastante reduzido, mantendo-se a qualidade num patamar bastante elevado.
Para essa parte do processo, contamos com a parceria do FAZ Makerspace, aqui de BH. A ajuda deles foi fundamental para que tudo corresse bem. Fizemos todas as peças de teste e produzimos o material final lá. E além do espaço de das máquinas, as ideias, dicas e cafezinhos com bolo foram fundamentais para a finalização do material!
O resultado final
Como sempre, o momento da entrega é sempre muito emocionante. Ver a pessoa recebendo um material preparado para as necessidades dela, e que ela nunca teve acesso, não tem preço. Com o Felipe não foi diferente. Como ele participou do processo, não houve nenhuma grande surpresa na entrega, mas houve muita felicidade. Foi muito legal ver ele descobrindo algumas formas que ainda não conhecia, ver ele descobrindo o material, entendendo peça por peça. Ele ficou muito satisfeito em saber que os sólidos geométricos têm as cores do time dele (ele é palmeirense) e que fizemos uma caixa especial com o nome dele em Braille na tampa. Enfim, o feedback foi realmente incrível!
Quando nós pensamos a L2, nós imaginamos momentos como esse. Situações em que nós pudéssemos contribuir um pouco com a melhora na qualidade de aprendizado das pessoas com deficiência. Ver o Felipe com seu material didático acessível nos fez ter certeza de que é isso que realmente queremos fazer! É essa a nossa missão! São momentos assim que nos dão força para continuar fazendo nosso trabalho e tentando tornar o mundo um lugar mais inclusivo.
Como sempre dizemos por aí, continuamos trabalhando pela inclusão pois o mundo não vai se tornar inclusivo sozinho!
Valeu Felipão! Obrigado por nos dar essa oportunidade! Estaremos juntos nas próximas!
Se você gostou do trabalho e se interessou, entre em contato conosco! Podemos pensar em uma solução para você! Será um prazer passar por esse processo todo novamente!
Inconformada com o preconceito e com uma educação não inclusiva tenta todos os dias fazer algo para que isso seja diferente. Mais que um valor moral, tornou isso sua profissão. Apaixonada por educação e inclusão. Sonha em viajar o mundo e num mundo que não seja mais preciso falar em inclusão, pois a inclusão pressupõe a exclusão.